DIREITO EM VOGA

A Volta do Leasing e o “Propósito Negocial”

Posted in Tributário / Tax Law by José Rubens Vivian Scharlack on abril 20, 2011

 

O jornal Valor Econômico de hoje noticia que o aumento na alíquota do IOF-Crédito, de 1,5% para 3%, “fez ressurgir o arrendamento mercantil (leasing) como alternativa de financiamento para veículos. O Valor visitou ontem vários revendedores e confirmou uma oferta mais firme do leasing – operação que não paga IOF – no lubar dos contratos convencionais de crédito direto ao consumidor (CDC)” (capa, “IOF maior faz ressurgir o leasing”, 20, 21, 22, 23 e 24/04/2011).

Reflitamos um pouco sobre esse fato. Parece claro que o que move consumidores e vendedores de veículos em direção ao leasing é deixar de recolher IOF na transação. Por outro lado, o leasing é um negócio jurídico totalmente diverso do CDC.

A conclusão que se alcança, portanto, é que diversos agentes do mercado automotivo fizeram uma escolha racional e de negócio – deixar de usar o CDC e passar a praticar leasing – com vistas única e exclusivamente a obter economia fiscal. Isso é planejamento tributário.

De outro giro, é também fato que, hoje, a Receita Federal do Brasil (RFB) e o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) possuem claro entendimento de que, se o negócio jurídico foi estruturado com o fim único e exclusivo de evitar ou reduzir sua carga tributária, estar-se-ia diante de hipótese que permite a aplicação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN), em que a autoridade fiscal pode desconsiderar atos e negócios praticados pelo contribuinte com o fito de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo. Segundo a doutrina que professam, atos praticados com finalidade exclusivamente tributária não teriam “propósito negocial” e, assim, seriam passíveis de desconsideração, tributando-se-lhes o “negócio jurídico subjacente”, considerado dissimulado desde que mais caro sob o ponto de vista da carga fiscal.

Entretanto, o franco movimento dos agentes do varejo automotivo, noticiado no jornal de hoje, denota o erro conceitual dessa doutrina: o mercado pode sim tomar decisões negociais com base exclusivamente na economia de tributos. Tributo é custo ou despesa e qualquer negócio que vise ao lucro – vale dizer, qualquer negócio do setor privado – é orientado por dois vetores: redução de custos e despesas e aumento de receitas. Por que isso teria de ser diferente na esfera tributária? Por que o interesse público secundário arrecadatório teria de possuir a seu favor uma norma de blindagem contra essa clara regra do capitalismo?

Além disso, percebe-se, pela singeleza, racionalidade e franqueza desse movimento (do CDC rumo ao leasing), que os agentes privados sequer se preocuparam em “dissimular” qualquer coisa: entre dois negócios jurídicos possíveis e viáveis, optaram pelo tributariamente mais barato.

Existem momentos em que a simplicidade de certos acontecimentos bota por terra longas, complexas e improcedentes construções teóricas. Acredita-se que este seja um deles.

Sistema Jurídico e Desenvolvimento Econômico: a Busca pela Eficiência e o Caso Brasileiro

Posted in Análise Econômica do Direito / Economic Analisys of Law by José Rubens Vivian Scharlack on agosto 20, 2010

por José Rubens Vivian Scharlack

(versão estendida e adaptada de artigo publicado pelo autor na Revista Estratégica, da Faculdade de Administração da Fundação Armando Álvares Penteado, Volume 9, Número 8, de Junho de 2010)

RESUMO: o texto analisa o desempenho da instituição máxima do sistema jurídico brasileiro, o Poder Judiciário, no desenvolvimento econômico de nosso país e busca discutir o papel e a capacidade desse poder perante as demandas que lhe serão apresentadas nesta época de crise e recuperação econômica em que se adentra.

ABSTRACT: the text analyzes the performance of the Brazilian legal system’s main institution, the Judiciary Power, in the economic development of our Country and intends to discuss the role and the capacity of such power toward the demands that will be presented to it in this newly-entered time of economic crisis and recuperation.

 Sistemas jurídicos, enquanto conjuntos de normas, processos e instituições, destinam-se a pacificar e regrar as relações sociais e, porque a qualidade destas influi na qualidade do sistema de trocas entre os agentes econômicos, é correto afirmar que alguma relação existe entre o nível de desenvolvimento de uma economia e o sistema jurídico ali vigente.

 Dentre os sistemas jurídicos existentes no mundo, sobressaem-se, por sua relevância numérica, aqueles filiados ao civil law (ou sistema romano-germânico) e aqueles adeptos do common law. O civil law é uma “família” de sistemas jurídicos em que predomina fortemente a lei geral e abstrata cuja hierarquização gera um ordenamento jurídico lógico, cuja flexibilização tem a rigidez da modificação legislativa e cuja aplicação ao caso individual e concreto depende de interpretação[1]. De sua vez, o common law pode ser definido como uma “família” de sistemas jurídicos em que os costumes, em maior grau, e as leis, em menor grau, servem de fontes e cuja elaboração, secular, foi feita nas cortes judiciais, e não nas universidades. Sua flexibilização é menos rígida porque prescinde de alterações legislativas e sua utilização nos casos concretos demanda menos a concretização de preceitos abstratos do que a identificação do remédio legal necessário.

 Logo, a filiação de um sistema jurídico a determinada “família” influencia a maneira como as regras jurídicas serão criadas (seja pelo processo legislativo, mais geral e abstrato, seja pelo processo judicial ou costumeiro, mais individual e concreto, cada qual com particularidades e dinâmicas próprias) e como os conflitos serão solucionados, ou seja, a filiação determina a forma como se darão as normas e os processos. Não define como serão as instituições.

 É por isso que a mera filiação de um sistema ao civil law ou ao common law – ou mesmo a aglutinação de influências dessas duas “famílias” em um mesmo sistema jurídico – não se revela fator determinante à catapultagem (ou não) de um país ao desenvolvimento econômico. Prova disso é o fato de existirem países ricos e pobres adeptos do civil law. Outros tantos, filiados ao common law, também os há economicamente desenvolvidos e subdesenvolvidos. Além do mais, a qualidade com que as normas são aplicadas pode variar significativamente de sistema para sistema dentro de uma mesma “família”, com relevantes conseqüências ao funcionamento das respectivas economias.

 Por outro lado, outro fator revela-se crucial à criação de um ambiente propício ao desenvolvimento econômico: o grau de eficiência do sistema jurídico, sua capacidade de regrar a vida social, atender à população e solucionar-lhe os conflitos. Acredita-se que a busca pela eficiência dos sistemas jurídicos possa tanto resultar em modificações decorrentes da importação de figuras de sistemas alienígenas quanto no aperfeiçoamento de figuras do direito interno. De uma forma ou de outra, e sem se desprezar a importância de se ter regras e processos de qualidade, o que dará o tom para a classificação de um sistema jurídico como eficiente (ou não) será o grau de desenvolvimento de suas instituições.

 Dentre as instituições encarregadas de aplicar as regras jurídicas, sobressai-se, por sua importância, o Judiciário. Nas democracias consolidadas, o Judiciário deixa de ser uma mera instituição para se tornar mesmo um Poder, em respeito à tripartição clássica de Montesquieu. Nas unidades políticas menos desenvolvidas, contudo, não é raro constatar o controle do Judiciário por algum ramo do Poder Executivo. De todo modo, a migração do sistema econômico global do Estado intervencionista para a economia de mercado trouxe para o enfoque mundial a necessidade de avaliação e qualificação do Judiciário.

 Na esteira desse raciocínio, deve-se ter em mente que um Judiciário lento, imprevisível ou arbitrário acarreta ao país custos econômicos, dentre os quais se destacam (i) o estreitamento da abrangência da atividade econômica, com desestímulo à especialização e à exploração de economias de escala (devido ao risco); (ii) o desencorajamento a investimentos e à ótima utilização do capital disponível, que, mercê da insegurança jurídica, tem de ser alocado de forma menos eficiente; (iii) a distorção do sistema de preços (decorrente da introdução do fator de risco jurídico nos preços); (iv) a diminuição da qualidade da política econômica, que volta a ser mais intervencionista; e (v) a pior avaliação, pelas agências de rating, das medidas de risco-país. O impacto da eficiência do sistema judicial no desenvolvimento econômico é, portanto, altamente relevante.

 Com relação ao Brasil, nosso sistema jurídico oriunda do civil law e, assim, tem na lei o seu principal norte e na Constituição Federal de 1988 sua principal lei. Na eventualidade de uma lacuna legal, os operadores do direito utilizam-se de equidade, analogia e demais ferramentas postas pelo próprio Direito, notadamente pela Lei de Introdução ao Código Civil e demais codificações. Exercem grande influência sobre a forma de resolução de conflitos os Códigos de Processo Civil e Penal. Na área tributária, apesar da profusão normativa existente, prevalece o Código Tributário Nacional.

 Por outro lado, não se pode negar a já importante mas ainda crescente influência que exerce em nosso sistema jurídico a jurisprudência. Cada vez mais se volta a atenção aos precedentes jurisprudenciais para se tomar decisões negociais e para se realizar planejamentos. Em contraste, cada vez menos atenção se dá às lições doutrinárias, outrora tão relevantes no civil law, ultimamente referenciadas apenas como fonte de aprofundamento do conhecimento da lei. O próprio Código de Processo Civil vem sendo reformado para dar mais valor aos precedentes jurisprudenciais e, assim, aproximar um pouco nosso sistema do common law. Prova disso são seus artigos 557 e 558, que permitem ao juiz relator (i) negar seguimento a recurso que esteja em manifesto confronto com súmula ou jurisprudência pacificada no Supremo Tribunal Federal (STF) ou em Tribunal Superior, (ii) dar pronto provimento a recurso contra decisão que esteja em manifesto confronto com súmula ou jurisprudência pacificada no STF ou em Tribunal Superior, ou ainda, ao juiz de primeira instância, (iii) dispensar de revisão pela segunda instância sentenças proferidas de acordo com súmula ou jurisprudência do STF ou Tribunal Superior.

 No tocante ao quesito eficiência, entretanto, acredita-se que ainda hoje sejam fortes os problemas enfrentados por nosso sistema jurídico e, particularmente, por nosso Judiciário. Neste sentido, é necessário destacar o parcial descolamento fático das regras e estruturas formalmente idealizadas e postas na constituição e na lei. Neste ponto, vale tentar situar fenomenologicamente o sistema jurídico brasileiro entre os modelos formal e informal criados por Gray[2] para ilustrar o caso indonésio:

Modelo Formal

Um sistema jurídico independente e funcional que reflete em grande parte as idéias de Max Weber sobre o tipo ideal de organização burocrática

Modelo Informal

Um sistema jurídico com distribuição assimétrica de informação e aversão a risco, com conseqüentes problemas de representação (autoridade-agente)

Regra: rule of law

Normas jurídicas são definidos pelo Legislativo (pela edição de leis) e pelo Judiciário (pela resolução de conflitos). As leis são encaradas como diretivas claras e são seguidas por todos (administradores públicos, judiciário e particulares)

Regra: não há

Embora tenham formalmente os mesmos papéis do que no modelo formal, Legislativo e Judiciário, acabam não os desempenhando. Atuando como “agente” do legislativo, o Governo legisla por decretos e regulamentos. Atuando como “agentes” dos Ministérios e do judiciário, autoridades podem ou não seguir a lei na consecução de seus deveres.

Imposição da Lei e Solução de Litígios: Responsabilidades Divididas

A criação de políticas públicas é efetivada pelo Legislativo e é claramente separada da administração pública (Executivo). Funções como imposição da lei e solução de litígios são de responsabilidade de órgãos separados, como cortes judiciais, polícia e Ministério Público. Nenhum indivíduo possui monopólio total sobre uma decisão, sem possibilidade de sua revisão por outra pessoa e a revisão final é atribuição de quem estiver no topo to sistema jurídico.

Imposição da Lei e Solução de Litígios: Autoridade Concentrada

Não apenas a criação de políticas públicas e as funções administrativas, mas também as tarefas de imposição da lei e solução de litígios tendem a ser monopolizadas pelo administrador público que tenha, em primeira mão, acesso às informações relevantes. Delegação de autoridade a agentes é evitada por causa das dificuldades em monitorar suas atividades. O alto custo da informação inibe a centralização em certos setores, todavia atribuindo significativa autoridade prática em níveis inferiores da burocracia.

Natureza das regras: foco em assuntos substantivos

Administrabilidade não é uma preocupação central dos legisladores; eles presumem que qualquer assunto sobre o qual eles decidam será implementado pela administração como determinado na lei.

Natureza das regras: foco na eficácia

A criação de regras mistura-se com a sua administração. Sem órgãos externos (como tribunais) para auxiliar confiavelmente na imposição legal, policy makers tentam facilitar sua eficácia mediante tentativas de forçar partes privadas a atender requisitos legais.

Supervisão: incentivos ligados a mérito

Sanções positivas e negativas aplicadas a administradores (inclusive do Judiciário) são diretamente ligadas a suas performances no atingimento de metas previamente combinadas. O sistema de incentivos é finamente sintonizado e confiável.

Supervisão: incentivos sem objetivo claro

Incentivos e supervisão não são necessariamente atreladas ao atingimento de metas. Altos custos de informação e adaptações culturais ao risco impedem a supervisão.

Resultados: de acordo com a lei

Atingimento das metas políticas mediante a completa eficácia da letra da lei.

Resultados: ajustes pontuais, negociação e priorização

Burocracia relativamente indisciplinada em que a negociação (e a corrupção) é lugar comum. Apenas os objetivos públicos mais visíveis têm chance de ser atingidos. Outras metas de interesse público têm grande chance de submergir.

 Com relação à rule of law, acredita-se que, de modo geral, o sistema brasileiro esteja mais próximo do modelo formal do que do modelo informal. De todo modo, não é de se desprezar o problema de representação existente em nosso país, onde, embora não se alcance a total inexistência de regra, gera-se grandes distorções da legalidade, sobretudo na área tributária, em que apesar de os decretos presidenciais deverem apenas regulamentar a lei (e não inová-la), na prática diversas leis tributárias acabam sendo redigidas de forma genérica, de modo a permitir, inconstitucionalmente, que o Poder Executivo, por meio de decretos, faça as regras tributárias oscilarem ao sabor da política do momento.

 Com relação à Imposição da Lei e Solução de Litígios, acredita-se estar o Brasil mais próximo do modelo formal do que do informal, muito embora se saiba das dificuldades de se aplicar a lei em regiões distantes (como os sertões de Acre, Rondônia e Roraima) e seja comumente referenciada a existência de bolsões de “Estado paralelo” nas zonas do tráfico de drogas em Rio de Janeiro e São Paulo.

 Sobre a Natureza das Regras, o Brasil está mais próximo do sistema informal, já que a hipertrofia do Executivo, contaminadora dos demais poderes, termina por embutir nos legisladores a preocupação com a eficácia das leis que eles mesmos produzem. Das cinco formas de atuação com vistas à eficácia definidas por Gray, três estão presentes no Brasil, notadamente em nosso sistema tributário:

  • A primeira, chamada de interlocking requirements, que nada mais são do que restrições administrativas a contribuintes faltosos – manuseada pela simples suspensão ou cancelamento do cadastro fiscal do contribuinte –, em muito se assemelha à nossa exigência de certidões negativas de débitos tributários para diversas tarefas empresariais, como a importação de produtos via regimes especiais aduaneiros, a participação em licitações e a obtenção de crédito. Embora já pronunciado inconstitucional pelo STF, esse tipo de expediente (conhecido no Brasil como sanção política), por ser relativamente simples e prescindir de um litígio judicial (a menos que a parte prejudicada procure o Judiciário), é largamente utilizado pela administração tributária brasileira, muitas vezes com êxito direto e, noutras, inclusive com o beneplácito do Judiciário;

 

  • A segunda é o grande uso do deslocamento da responsabilidade tributária para terceiras pessoas, que assim ficam com a obrigação de reter tributos do contribuinte e repassá-los aos cofres públicos. Este expediente é largamente utilizado para facilitar o trabalho fiscalizatório no Brasil, onde não só o pagamento de salários e as remessas ao exterior, mas também o pagamento por diversos serviços e mesmo pela compra de mercadorias como autopeças, cosméticos e fármacos são objeto, hoje, de retenção de diversos tributos;

 

  • A terceira é o uso de presunções, amplamente vigorante no sistema tributário brasileiro ante o alto custo da informação. O outrora tão combatido “fato gerador presumido” hoje é a tônica para a arrecadação do ICMS em sistema de substituição tributária “para frente” (em que o responsável recolhe não só o tributo por ele devido, mas também o que será devido nas etapas posteriores de comercialização), das contribuições previdenciárias calculadas sobre o valor da prestação de serviços realizados mediante cessão de mão-de-obra (quando sua base de cálculo constitucional é a folha de pagamentos da empresa prestadora), dos tributos devidos sobre o lucro de empresas optantes da sistemática denominada “lucro presumido” (em que tais tributos são calculados sobre um percentual do faturamento, presumido como lucro pela legislação) ou mesmo de todos os tributos devidos por micro e pequenas empresas (calculados por percentuais sobre o faturamento oriundos de fórmulas indiretas e padronizadas por setores da economia – a sistemática denominada “SIMPLES”).

O alto custo da informação também se reflete no quesito Supervisão, em que o sistema brasileiro se aproxima mais do modelo informal. Os servidores públicos em geral não são agraciados com métodos de avaliação e premiação baseados em performance. Eis porque, como se verá adiante, os membros de nosso Judiciário são amplamente favoráveis ao atrelamento dos critérios de promoção à criação de indicadores quantitativos de seu desempenho.

Por fim, os resultados de um sistema como o nosso, misto entre os modelos formal e o informal, não deixam de envolver, infelizmente, soluções pontuais e personalizadas, negociações indevidas e uma certa dose de arbitrariedade, sobretudo nos escalões inferiores de poder (autoridades fiscais e policiais).

Eis porque criam-se no Brasil estruturas paralelas às instituições formalmente existentes, como clubes ou empresas familiares. Ademais, proliferam, no Brasil, sistemas de informação contendo “listas negras”, como a Centralização de Serviços dos Bancos (SERASA), o Sistema de Proteção ao Crédito (SPC) e o governamental Cadastro Informativo de Devedores da Fazenda Nacional (CADIN), além, é claro, da preferência empresarial pela negociação direta e pela cuidadosa e prévia seleção de parceiros de negócios. O recurso ao Judiciário é visto como última alternativa.

Por ser oriundo de um sistema misto, em que, como se viu, diversas funções são original e constitucionalmente reservadas a instituições que terminam por delegá-las ao Executivo, o Poder Judiciário não deixa de apresentar deficiências. Pinheiro[3] demonstra que os problemas do Judiciário brasileiro implicam às empresas custos econômicos estimados – grosseiramente – em 20% do PIB, o que evidencia a gigantesca importância do assunto. Tais problemas, apesar de agravados pela instabilidade de nosso arcabouço jurídico, decorrem de causas profundamente arraigadas e sedimentadas em nossa sociedade e são ainda hoje uma parcial incógnita em razão da quase ausência de estudos e análise a respeito desse Poder. Eis porque elaborou extensa pesquisa sobre a impressão dos próprios membros do Judiciário sobre a situação do Poder. Serviram de fonte 741 magistrados brasileiros, das Justiças Federal, Estadual e do Trabalho, em todas as suas instâncias. Seus principais resultados vão resumidos abaixo: 

  • Os principais problemas do Judiciário, de acordo com os magistrados, são, em primeiro lugar, a morosidade, em segundo, o alto custo de acesso (custas judiciais e outros custos) e, em terceiro lugar, a falta de previsibilidade das decisões judiciais. O aspecto mais positivo ressaltado pelos magistrados é a imparcialidade de suas decisões;

 

  • De acordo com a visão dos magistrados, contribuem para a morosidade do Judiciário (i) a ação de indivíduos, firmas e grupos – sobretudo o próprio Estado, na seara tributária – que a ele recorrem não para pleitear direitos mas para postergar o cumprimento de suas obrigações; e (ii) problemas internos ao funcionamento do sistema legal e judicial (antigos e conhecidos, mas alheios à própria atuação dos magistrados, tais como número insuficiente de juízes, profusão de recursos e possibilidades de se protelar uma decisão – o que, além da morosidade, gera desmotivação e menos comprometimento do magistrado com a qualidade de suas próprias decisões, que sempre acabam sendo revistas por uma instância superior –, falta de equipamentos de informática, preferência dos advogados por estender a duração de litígios – e assim preservar seu mercado de trabalho –, ênfase no formalismo processual e precária situação das instalações judiciárias);

 

  • Ainda segundo os magistrados, contribuem para a falta de previsibilidade de suas decisões (i) as falhas no ordenamento jurídico, (ii) o uso freqüente de liminares e (iii) a tendência a que as decisões sejam tomadas com base em detalhes processuais (não se alcançando, portanto, em muitas decisões, o mérito das causas);

 

  • Por outro lado, não são percebidos pelos magistrados dois problemas que inquinam de imprevisibilidade as decisões judiciais – e consequentemente, afetam de forma séria a segurança jurídica de nosso sistema –, a saber, (i) a ‘judicialização’ da política, que é a tendência de os poderes políticos transferirem para o Judiciário a solução de conflitos políticos, a qual só é admitida pelos magistrados no círculo restrito dos Tribunais Superiores, e (ii) a ‘politização’ das decisões judiciais, fenômeno ainda mais perigoso, segundo o qual as decisões judiciais são baseadas mais na visão política do juiz do que na interpretação rigorosa da lei. De acordo com os achados de Pinheiro[4], a politização das decisões judiciais, fenômeno tão mais grave em razão do pouco conhecimento que dele se tem “[…] freqüentemente resulta da tentativa dos magistrados de proteger a parte mais fraca na disputa que lhe é apresentada. Os magistrados se referem a essa atitude como um papel social que o juiz tem de desempenhar. Em relação a essa questão, perguntou-se aos magistrados sobre com qual de duas proposições eles concordavam mais: (A) que os contratos devem ser sempre respeitados, independentemente de suas repercussões sociais; ou (B) que a busca da justiça social justifica decisões que violem os contratos. A grande maioria dos entrevistados (73,1%) respondeu que eles concordavam mais com a segunda alternativa (B). Esta foi, sem dúvida, uma das mais importantes constatações desta pesquisa, no sentido de que ela contradiz inteiramente a visão que economistas e responsáveis pela política econômica têm sobre a forma que os juízes pensam e agem, neste sentido ajudando a entender por que tantas iniciativas de política econômica freqüentemente são bloqueadas na Justiça pelas partes afetadas”. Enfim, os magistrados claramente privilegiam, por esse viés de politização de suas decisões, a “justiça” em detrimento da segurança jurídica. Quer o juiz brasileiro, dentro de nosso sistema de civil law, agir, em larga medida, como um juiz do common law, sem, entretanto, limitar-se pelas regras de precedente ou pelas decisões de tribunais superiores, que são os instrumentos que dão previsibilidade ao sistema de common law. Sua neutralidade, enfim, fica gravemente comprometida, sobretudo em questões envolvendo direito ambiental, direito do trabalho, direto previdenciário, direito do consumidor e direito tributário.

Percebe-se, pelos achados acima, que, infelizmente, no caso brasileiro, por compor um sistema jurídico onde ainda se vê divorciarem-se previsão constitucional e realidade fática, o Judiciário, na busca pela eficiência, tropeça em dois problemas particularmente graves: a demora para a entrega de uma prestação jurisdicional final e a falta de neutralidade política dos juízes. Ambos os problemas impactam negativa e significativamente o desenvolvimento econômico nacional, já que a demora do Judiciário e a incerteza do resultado de seus processos tornam-se componentes de risco que instruem as matrizes de preços em todas as transações (sobretudo as financeiras e de crédito nacional e externo, sendo a medida de risco-país a mais visível delas), bem como inibem o desenvolvimento da atividade empreendedora no país e o afluxo de investimentos externos na atividade produtiva nacional. 

Todavia, conforme apontado na pesquisa, o problema da morosidade pode ser mitigado com o implemento de medidas simples e que não implicam necessariamente a realocação de mais recursos governamentais ao Judiciário, tais como (i) a instituição de indicadores de performance como condicionadores da promoção de magistrados (foram particularmente sugeridos dois critérios interessantes, a saber, [a] indicadores quantitativos sobre celeridade processual – intervalo de tempo entre a entrada e o julgamento dos processos – e [b] indicadores quantitativos sobre previsibilidade das decisões – proporção de decisões confirmadas em instâncias superiores), (ii) o aumento do treinamento de juízes em fase pré-judicatura (a exemplo do que ocorre com os diplomatas) e (iii) a nomeação de administradores forenses, ferramenta fundamental para otimizar o tempo dos juízes e concentrá-lo no que eles realmente são talentosos: proferir decisões judiciais.

 Para remediar o problema da não-neutralidade, é necessária educação econômica, a qual pode ser, ao menos inicialmente, passada aos magistrados durante os treinamentos pré-judicantes, ou mesmo mediante leve aprimoramento das grades curriculares nos cursos de direito. A educação econômica mostra-se particularmente importante como mecanismo destinado a reduzir ou mesmo evitar a chamada “politização da justiça”, de modo a que os juízes centrem suas decisões na análise do Direito e não subvertam seu papel decisor eminentemente técnico no afã distributivista de realizarem, individualmente e em substituição ao governo, política social, mesmo porque a forma mais eficiente de se atingir os objetivos distributivistas que pesam na consciência dos juízes é garantir segurança jurídica ao nosso sistema, do qual o Poder Judiciário é a instituição máxima. Ademais, é necessário que se entenda que a não-neutralidade do magistrado tem conseqüências negativas, das quais se pinça, com Pinheiro (2003b), a incerteza dos contratos e o aumento de prêmios de risco (isto é, preços) com prejuízo direto, a posteriori, às próprias partes (trabalhadores, consumidores, clientes bancários etc.) a que o magistrado buscara inicialmente proteger.

 Ainda, lembra-se que há recentes reformas implementadas, cujos resultados, pendentes de avaliação em razão de sua pouca expressividade até o momento, podem alterar o quadro acima descrito. É que, a partir de 2005, com o advento da Emenda Constitucional nº 45, foram sendo paulatinamente introduzidas modificações no sistema brasileiro visando a aplacar as principais mazelas do Judiciário e, assim, dar-lhe maior eficiência. São oriundas dessa reforma, por exemplo, as súmulas vinculantes, as quais não só condensam o entendimento do STF a respeito de determinado assunto, mas também se impõem às instâncias inferiores, de modo a uniformizar a jurisprudência sobre aquele tema, trazendo mais segurança jurídica e previsibilidade ao nosso sistema. Também são resultados dessa reforma a ferramenta de repercussão, a qual, quando utilizada, “congela” o trâmite de todos os processos existentes no país sobre determinado assunto até que o STF exare sua decisão a respeito. Por fim, é igualmente produto da reforma a criação do Conselho Nacional de Justiça, órgão composto por membros do Judiciário, do Ministério Público e da Advocacia, bem como por cidadãos de destaque, ao qual é atribuído o papel de controle externo do Poder Judiciário. Na esteira da Emenda 45, reformas outras foram trazidas pela legislação ordinária, donde se pinça, dentre outras, (i) a nova Lei de Execução Civil (Lei 11.232/2005), que abreviou a duração do processo de execução; (ii) a Súmula Impeditiva de Recursos (Lei 11.276/2006), que permite ao juiz não receber recurso de apelação se sua sentença estiver de acordo com matéria sumulada pelo STF ou pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ); (iii) a Lei 11.277/2006, que estabelece a possibilidade de pronta extinção da ação pelo juiz em casos repetitivos sobre cujo assunto ele já possua entendimento firmado pela improcedência da causa; e (iv) a Lei 11.280/2006, que permite ao juiz reconhecer a prescrição[5] do direito discutido no processo sem prévia provocação das partes. Outra iniciativa de caráter administrativo que se vem notando é a progressiva informatização dos fóruns e tribunais, permitindo a verificação dos andamentos e decisões processuais pela internet e, nalgumas esferas mais restritas, mesmo a apresentação de ações, defesas e recursos por meio eletrônico.

 Por fim, cabe ressaltar que parte do discurso liberalizante que ensejou toda a discussão a respeito da reforma do Judiciário – de acordo com o qual o Estado deveria reduzir sua atuação para atuar como mero facilitador dos negócios a serem empreendidos, com a maior liberdade possível, pela iniciativa privada – caiu por terra, em razão dos abusos cometidos no mercado financeiro norte-americano e europeu que acabaram por gerar uma onda de clamor por uma maior regulação do mercado financeiro e, por via de conseqüência, um maior controle estatal sobre suas transações. A tendência mesmo parece ser uma mudança significativa do papel do Estado na economia. No momento inicial, em que a crise bateu às portas dos países, o Estado foi chamado a contribuir para reverter a iliquidez geral dos mercados e não raro assumir dívidas do setor privado. Em um segundo momento, estima-se a ampliação das funções regulatórias estatais, com esperadas repercussões políticas e sociais.

 Com isso de maneira nenhuma se altera a necessidade de reforma judicial, mas reforça-se a necessidade da presença estatal, não como empreendedor, mas como forte regulador e facilitador (na medida em que não lhe cria entraves despropositados e ainda proporciona a infra-estrutura necessária ao desenvolvimento) da economia, cujos principais agentes, concorda-se, devem ser os entes privados. A desestatização da economia significa, em última análise, a retirada do Estado do papel de ator econômico principal, nunca se lhe subtraindo, entretanto, a tutela do interesse público e a necessária regulação e controle das atividades dos particulares, na medida em que a falta dessa regulação e controle prejudiquem os direitos e garantias individuais e sociais e, assim, a sociedade como um todo.

 Neste novo cenário, em que a demanda pela atuação estatal (não empreendedora, mas reguladora) é reforçada, o papel do Judiciário torna-se ainda mais relevante – posto que ele se constitui na esfera última de proteção ao indivíduo, à sociedade e ao próprio Estado, bem como a instituição máxima garantidora da segurança necessária à conformação da infra-estrutura legal para o desenvolvimento nacional – e sua reforma, nos termos aqui analisados, torna-se mesmo crucial.


[1]    Em português jurídico, subsunção (adequação do fato à norma).

[2] GRAY, C. W. Legal process and economic development, a case study of Indonesia. Washington: World Bank Technical Paper, 1989.

[3] PINHEIRO, A. C. Direito e economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto?. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, 2003a.

[4] PINHEIRO, A. C. Judiciário, reforma e economia: a visão dos magistrados. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA, 2003b.

[5] Extinção do direito pelo decurso do tempo, sem que tenha havido o seu exercício pelo titular.

O “Refis da Crise”

Posted in Tributário / Tax Law by José Rubens Vivian Scharlack on dezembro 18, 2009

José Rubens Vivian Scharlack,

 Veiculado pela Lei 11.948/2009 e regulamentado pela Portaria Conjunta PGFN/RFB 6/2009, o programa excepcional para quitação de débitos tributários, que vem sendo apelidado pela mídia de “Refis da Crise”, contém importantes benesses aos contribuintes e, se utilizado responsavelmente, pode se firmar em 2009 como um dos instrumentos governamentais mais eficazes para aplacar a situação de crise econômico-financeira em que se encontra grande parte das empresas brasileiras. Criado em meio a grande participação parlamentar – portanto fruto da democracia –, chegou mesmo a surpreender a Fazenda Nacional quando da disponibilização de seu texto final, tamanhos os benefícios concedidos aos contribuintes no texto da lei, e talvez por isso a regulamentação que a seguiu, expedida em conjunto pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (“PGFN”) e pela Secretaria Receita Federal do Brasil (“RFB”), tenha primado pelo rigor no seu trato, vez ou outra extrapolando os limites da legalidade.

 De fato, esse programa contém características interessantes, como a possibilidade de se pagar à vista ou parcelar, com descontos, qualquer débito tributário administrado pela RFB e pela PGFN, inclusive o saldo remanescente de débitos consolidados em programas anteriores (REFIS, PAES, PAEX e parcelamentos previsto nas Leis 8.212/1991, artigo 38, e 10.522/2002, artigo 10). A possibilidade estende-se também a débitos oriundos de discussões judiciais perdidas pelos contribuintes, como o creditamento do IPI sobre insumos não-tributados ou objeto de alíquota zero e o não-recolhimento da COFINS por sociedades uniprofissionais. Vale frisar, entretanto, que a Portaria Conjunta 6/2009 vedou, sem base legal, a inclusão, no programa, de débitos apurados na forma do Simples Nacional. De todo modo, é o contribuinte quem fará a consolidação dos débitos que quer ver incluídos no programa, cabendo tutela judicial para afastar eventuais vedações ilegais, a exemplo da acima apontada.

 A principal vantagem do programa consiste nos descontos concedidos sobre multas, juros e encargos. A Lei 11.941/2009 é expressa ao excluir a receita consistente na contrapartida desses descontos da base de cálculo do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ), da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), da Contribuição ao Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS). O programa faz distinção entre débitos que não foram parcelados anteriormente e débitos que já o foram. A tabela abaixo resume os descontos concedidos para pagamento à vista ou parcelamento[1] dos débitos que não foram objeto de parcelamento anterior:

Pagamento

 

Desconto:

 

À Vista

Em até 30 Parcelas Em até 60 Parcelas Em até 120 Parcelas Em até 180 Parcelas
Multas (mora e ofício) 100% 90% 80% 70% 60%
Multa Isolada 40% 35% 30% 25% 20%
Juros de Mora 45% 40% 35% 30% 25%
Encargo Legal 100% 100% 100% 100% 100%

 Quanto a débitos que já foram objeto de parcelamento anterior, tais podem ser pagos à vista, ocasião em terão os mesmos benefícios acima, ou de forma parcelada, quando sofrerão as seguintes reduções:

Parcelamento anterior

 

Desconto:

 

REFIS

 

PAES

 

PAEX

Lei 8.212/1991 Lei 10.522/2002
Multas (mora e ofício) 40% 70% 80% 100% 100%
Multa Isolada 40% 40% 40% 40% 40%
Juros de Mora 25% 30% 35% 40% 40%
Encargo Legal 100% 100% 100% 100% 100%

Por outro lado, no reparcelamento de débitos já parcelados anteriormente, ao escolher o número de meses por que desejará alongar a dívida, o contribuinte deverá respeitar o pagamento de uma parcela mensal mínima, de acordo com o a seguinte tabela:

Programa: Parcela Mínima
REFIS 85% da média das prestações devidas de dezembro/2007 a novembro/2008 ou, em caso de exclusão durante esse período, 85% da média das prestações devidas nesse período.
Demais Programas 85% do valor da prestação devida em novembro/2008.

Ainda no tocante à prestação mínima, especialmente para débitos já parcelados no REFIS, vale destacar a discrepância entre a regra constante da Portaria Conjunta 6/2009, refletida na tabela acima, e aquela prevista na Lei 11.941/2009, a qual estabelecera, como parâmetro para fixação da parcela mínima, 85% da média dos doze últimos meses pagos dentro do programa até novembro de 2008 e, em caso de exclusão do contribuinte em menos de doze meses após o início do programa, 85% da média das parcelas pagas. A portaria conjunta ainda previu que, se a situação do contribuinte não corresponder ao previsto na tabela acima, seriam observados os valores de prestação mínimos existentes para débitos não parcelados anteriormente. Por fim, caso o contribuinte tenha mais de um parcelamento anterior vigente e deseje convertê-los no novo programa, é regra da portaria conjunta que a parcela mínima seja a somatória das parcelas mínimas encontradas para cada parcelamento anterior.

O programa prevê, também, que a antecipação no pagamento de parcelas vincendas – em um número mínimo de doze – será beneficiada pelos mesmos descontos previstos para o pagamento à vista. A portaria conjunta esclarece que, em havendo tal antecipação, serão amortizadas as últimas parcelas previstas no cronograma de pagamento, mantendo-se sempre o valor da prestação apurado na consolidação. Inova, entretanto, ao exigir do contribuinte, para fruição do benefício, a quitação de eventuais prestações vencidas até a data do pagamento da antecipação.

Outra facilidade trazida pelo programa é a possibilidade de quitação, pelas pessoas jurídicas, das multas de mora e de ofício e dos juros moratórios com a utilização de prejuízos fiscais e bases de cálculo negativas de CSLL acumulados sobre o lucro líquido próprios, ocasião em que (a) não se aplicará o limite de 30% previsto na legislação para compensação desses prejuízos com lucros da pessoa jurídica e (b) o valor a ser utilizado para abatimento das multas e juros será determinado mediante a aplicação das alíquotas de 25%, sobre os prejuízos fiscais, e 9%, sobre a base de cálculo negativa da CSLL. De todo modo, quando da consolidação das dívidas pelo contribuinte no programa, o valor a ser informado será o montante bruto dos prejuízos fiscais e bases de cálculo negativas (tanto dos existentes quanto daqueles que se deseja utilizar no âmbito do programa), antes da aplicação das alíquotas respectivas de 25% e 9%.

A portaria conjunta vedou, entretanto, que pessoas físicas que assumam dívidas de pessoas jurídicas – aliás, outra faculdade permitida – no âmbito do programa utilizem prejuízos fiscais e bases de cálculo negativa destas para abatimento das multas e juros. Acontece que tal vedação, além de ser ilegal (posto que não veio prevista na Lei 11.941/2009), não faz sentido, vez que (a) a situação das pessoas jurídicas cujas dívidas foram assumidas pela pessoa física não é de mera responsabilidade subsidiária, mas de solidariedade, valendo o pagamento da pessoa física como se tivesse sido feito pela pessoa jurídica, tanto é que (b) a prestação mínima no programa deverá obedecer ao piso existente para pessoa jurídica, e não pessoa física, e (c) acaso rescindido o parcelamento, quem será intimada para pagamento do saldo remanescente é a pessoa jurídica, não a física.

Vale ainda ressaltar como benefício aos contribuintes a possibilidade de inclusão parcial de dívidas discutidas em processos administrativos ou judiciais. Para tanto, deverá ser possível identificar-se com exatidão os períodos de apuração e os débitos objeto da desistência parcial, cuja petição deverá ser formalmente apresentada no(s) processo(s) em até trinta dias após a ciência do deferimento da adesão ao parcelamento ou da data do pagamento à vista.

Por fim, será excluído do programa o contribuinte que tiver em aberto três parcelas, consecutivas ou não, ou tiver uma parcela em aberto, mesmo estando pagas todas as demais. A portaria conjunta diz ainda que terá o pedido de parcelamento cancelado, sem direito a restabelecimento dos parcelamentos anteriormente rescindidos, a pessoa que não apresentar as informações necessárias à consolidação dos débitos no programa ou não pagar a primeira prestação – e as demais, até a data da consolidação – do parcelamento. A rescisão do parcelamento produzirá efeitos após decorridos dez dias a partir da respectiva ciência pelo contribuinte, até quando ele ainda poderá (a) liquidar integralmente o débito consolidado, o que prejudicará os efeitos da rescisão, ou (b) interpor recurso administrativo, a ser analisado pelo titular da Delegacia da Receita Federal responsável pelo domicílio tributário do contribuinte, o que suspenderá o processo de rescisão, devendo ser recolhidas as parcelas mensais enquanto o caso pender de análise. A decisão então proferida será definitiva na esfera administrativa, não caberá qualquer recurso ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, a quem, portanto, foi vedado, pela portaria conjunta (não pela lei), acesso a este importante tema. Operando-se a rescisão, todos os débitos incluídos no programa serão imediatamente exigíveis do contribuinte e lhes serão restabelecidos os valores originais, sem os descontos e sem a possibilidade de quitação parcial por meio de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa.

Como se vê, trata-se de importante oportunidade, a qual deve, entretanto, ser utilizada com responsabilidade e com o devido controle orçamentário. Aos contribuintes que desejam fazer uso do programa, mas se vêem impedidos em razão de restrições ilegais como as aqui apontadas, tal é plenamente possível, desde que se obtenha em tempo a correspondente tutela judicial.


[1] Observando-se parcelas mensais mínimas de R$ 50,00 para pessoa física, R$ 100,00 para pessoa jurídica e R$ 2.000,00 para débitos oriundos do aproveitamento de créditos de IPI sobre insumos não-tributados ou objeto de alíquota zero

Oportunidades Jurídicas: Soluções para Minimizar o Impacto da Crise Mundial nas Empresas Brasileiras

Posted in Advocacia / Practicing Law by José Rubens Vivian Scharlack on dezembro 18, 2009

José Rubens Vivian Scharlack

 Recapitule-se o que vem sendo ostensiva e repetidamente explicado pelos jornais, revistas e seminários especializados: a indiscriminada concessão de créditos, lastreada por infindáveis cadeias de sua respectiva re-securitização, garantidas por ativos sobrevalorizados e insuficientemente controlada pelo Estado, uma vez tendo sua satisfação frustrada pela simples – mas volumosa e, ante o processo deflacionário, inevitável – falta de pagamento por parte dos devedores iniciais, gerou uma “quebradeira” em todas as instituições financeiras norte-americanas e européias inicialmente ligadas a tais créditos – denominados, no mercado, subprime – e, em momento subseqüente, uma perda de confiança no mercado financeiro como um todo, tendo a crise por fim ultrapassado a economia financeira e contaminando a dita economia real, produtiva, também cruzando, pela via da globalização, as fronteiras do “mundo desenvolvido” e alcançando economias até então saudáveis como a brasileira, a qual, como inúmeras outras, está prestes a adentrar uma possível e tenebrosa etapa de deflação, com pouco ou nenhum espaço para sua reversão, uma vez deflagrada, por meio de políticas monetárias oficiais.

 Neste momento inicial, em que a crise bate às portas dos países, o Estado está sendo chamado a contribuir para reverter a iliquidez geral dos mercados e não raro assumir dívidas do setor privado. Em um segundo momento, estima-se a ampliação das funções regulatórias estatais, com esperadas repercussões políticas e sociais.

 No Brasil, a crise já estampa numerosos efeitos: queda na produção de bens de capital (decréscimo de 24,4% em relação a fevereiro de 2008, o pior resultado desde 1996), queda na produção industrial (diminuição de 5,4% em relação a março de 2008), queda de vendas no varejo (apenas em São Paulo, a redução foi de 7,8% neste primeiro trimestre), aumento da inadimplência de empresas (20% só em 2009), do endividamento das pessoas físicas, do número de falências (foram decretadas 204 só em março) e do custo do crédito, além da conseqüente queda da confiança do empresariado em relação a este ano de 2009[1].

 Em tal cenário de crise, com a retração do mercado e das fontes de financiamento bancário, e enquanto nenhuma solução estatal se faz sentir, as empresas voltam-se a si mesmas no intuito de corrigir ineficiências e reduzir custos. E, paradoxalmente, aquelas que já tinham feito essa lição em 2008 – e, portanto, não têm mais fontes de onde extrair seu capital de giro – podem estar em situação ainda mais grave. Há, por fim, o triste exemplo de empresas que, obrigadas a efetuar cortes maciços em seu quadro de funcionários, vêem contra si lançadas decisões judiciais determinando-lhes reintegrar os trabalhadores a seus antigos postos, mesmo que não mais subsista razão financeira ou eficiência econômica a sustentar essa manutenção.

 É precisamente a esse ajuste de eficiência que a advocacia traz sua contribuição. Diversos expedientes jurídicos foram trazidos – alguns fortemente adaptados, outros genuinamente criados – para este momento de crise econômica e aplicam-se tão bem ao atual cenário empresarial brasileiro que podem mesmo ser conceituados como oportunidades.

 As primeiras oportunidades que se destaca são as tributárias: a recuperação total da COFINS para pessoas jurídicas tributadas pelo lucro real e o aproveitamento de incentivos fiscais à inovação tecnológica para indústrias constituem, por exemplo, diferenciais fortíssimos para o pronto acúmulo de ativos nas demonstrações financeiras e, possivelmente, até para a geração de caixa nas empresas. Também o são a recuperação de tributos outros, avaliados caso a caso, bem como a realização de planejamentos específicos dentro do contexto de reestruturações societárias ou operacionais.

 Igualmente importante para a geração de ativos é a recuperação de despesas indevidas suportadas por empresas que se utilizam (ou já se utilizaram) dos serviços de telefonia móvel. Destaque-se, ademais, a revisão e renegociação de contratos celebrados com fornecedores e clientes, cuja conclusão pode impactar tanto os resultados de curto quanto os de longo prazo. Outras soluções jurídicas envolvem a reestruturação completa de empresas que passam por dificuldades financeiras e operacionais, seja dentro do escopo de uma recuperação extrajudicial, seja ainda por meio da recuperação judicial, que não se confunde com a falência por permitir a continuidade da empresa e de suas atividades mesmo durante o processo.

 Ainda, é absolutamente relevante o impacto que pode ter uma reestruturação trabalhista feita corretamente. A realocação de funcionários dentro do mesmo grupo econômico, a revisão de pactos coletivos e mesmo a remodelação de acordos de Participação nos Lucros e Resultados podem reverter em maior eficiência à empresa, com a necessária segurança jurídica.

 Eis, portanto, algumas oportunidades criadas e desenvolvidas pela advocacia para melhoria da liquidez e dos resultados das empresas brasileiras, as quais, menos ou mais afetadas pela crise, têm nas mãos a chance de gerar valor a partir de soluções jurídicas e, via de conseqüência, otimizar a alocação de seus recursos restantes independentemente de qualquer pacote de ajuda estatal. De todo modo, para se aplicar qualquer dessas soluções, as empresas devem obter orientação técnica específica, sob pena de não aproveitarem essas oportunidades ou fazê-lo de forma a prejudicar suas atividades no futuro.

 [1] Fontes: Valor Econômico e Serasa Experian.